EDUCAÇÃO

Adolescente desafia tabu e se torna 1ª maestrina do Afeganistão.

Sob regime do Talebã, país proíbe que mulheres estudem música.

Em 21/11/2015 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Sob o regime do Talebã, meninas e mulheres do Afeganistão precisam lutar diariamente contra a restrição de seus direitos. Por muitos anos, elas não puderam frequentar escola e até mesmo o acesso à música era limitado.

Apesar disso, em um concerto na capital afegã, Cabul, uma cena causa surpresa: uma mulher rege uma orquestra. Quem segura a batuta é Negin Khpolwak, que, com apenas 19 anos, se tornou a primeira maestrina do Afeganistão.

Negin estuda no Instituto de Música do Afeganistão, a única escola desse tipo no país. Ali é possível encontrar meninos e meninas tocando piano, violoncelo, flauta e outros instrumentos de cordas tradicionais do Afeganistão, como o rebab e o sarod.

A repórter da BBC em Cabul, Shaimaa Khalil, conversou com Negin. Confira o relato da jornalista.

"Ao entrar no instituto, encontro Negin no corredor de uma das salas de ensaio tocando uma de suas músicas favoritas no piano: a sonatina do compositor italiano Muzio Clementi (1752-1832).

Vejo que Negin ainda está aprendendo, e quando lhe falta experiência, ela compensa com sua paixão pela música.

"Khosh Amadeed (seja bem-vinda)", diz Negin, com um sorriso envergonhado. "Hoje minhas mãos estão doendo um pouco, então não estou conseguindo obter meu melhor desempenho. Mas amo ensaiar no piano", acrescenta.

"Tudo o que eu quero é ser uma pianista e maestrina muito boa. Não só no Afeganistão, mas no mundo todo".

"Mas você cresceu com a música?", pergunto. "Não", responde Negin, com um olhar assustado.

Negin veio de uma família pobre na província de Kunar, uma área bastante conservadora no nordeste do Afeganistão e dominada pelo Talebã.

"Meninas em Kunar não podem ir à escola e muitas delas não têm permissão das famílias para estudar música. Então precisei ir para Cabul para realizar meu sonho. Foi meu pai que me ajudou."

Pressão familiar

Quando Negin tinha apenas nove anos, seu pai a colocou em um lar para crianças para que ela pudesse ter acesso à educação.

Foi lá que ela começou a ouvir música e a ver shows na televisão. A menina, então, fez um teste para entrar no Instituto, onde estuda há quatro anos ─ são, ao todo, 200 estudantes matriculados. Desse total, apenas 25% são mulheres.

Mas o caminho não foi fácil para Negin. A mãe dela dizia estar feliz por vê-la frequentando a escola, mas não gostava da ideia dela estudar música. Negin não era a única que se sentia assim.

"Meu tio disse: 'Nenhuma menina da nossa família deveria aprender música. É contra nossa tradição", relembra.

Sob pressão de parentes, Negin teve de sair do instituto por seis meses. Seu pai interveio, porém, e disse ao tio: "A vida é dela. Ela pode estudar música se é isso que quer". E ela voltou às aulas de música depois disso.

O problema é comum, segundo o fundador e diretor do instituto, Ahmad Sarmast.

"Uma criança é matriculada com a total aceitação dos pais, mas aí um tio, tia ou avô começa a por pressão nos parentes para tirar a criança do programa de música ou até mesmo das aulas em geral", afirma Ahmad.

E não é só contra a tradição e o conservadorismo que o instituto precisa lutar ─ também há o problema da violência.

'Pecado'

Muitos acreditam que a música é algo para pecadores. No ano passado, um dos concertos de estudantes organizados fora do campus foi alvo de homem-bomba ─ uma pessoa que estava na plateia foi morta e Sarmast ficou com a audição prejudicada.

"Isso não te assusta, a possibilidade de terem novas bombas?", pergunto a ele. "Não. Nós somos parte dessa luta. Estamos nos posicionando contra a violência e o terror com nossas artes e cultura, especialmente com a música. Essa é uma das formas que podemos educar nosso povo sobre a importância de viver em paz e harmonia, em vez de matarmos uns aos outros."

Ele olha para Negin. "Parte da minha inspiração é ela ─ e estudantes como ela, que continuam vindo aqui apesar das dificuldades."

Em fevereiro de 2013, Negin foi escolhida para representar o instituto em uma viagem para os Estados Unidos. Lá, ela se apresentou no Carnegie Hall, em Nova York, e no Kennedy Center, em Washington, tocando sarod.

"Foi maravilhoso. Eu me senti muito bem, mas sempre quis ser uma pianista", diz ela. Sendo assim, depois de voltar a Cabul, começou a aprender piano e também a conduzir como maestrina.

"Hoje foi minha primeira apresentação como maestrina. Eu fiquei muito feliz. Chorei quando subi ao palco e vi todas aquelas pessoas na plateia. Eu quero que o Afeganistão seja como outros países no mundo, onde mulheres podem ser pianistas e maestrinas."

Com isso na cabeça, ela também começou a praticar e a conduzir meninos e meninas do instituto em uma orquestra mista.

"Quando você se tornar uma pianista famosa e tocar em vários lugares do mundo, posso te assistir de graça? Ou terei de pagar caro por um ingresso?", pergunto. "Hmmm, não, me desculpe, mas você terá de pagar", brinca.

Me despeço e prometo a ela que um dia iria voltar para ver seus concertos.

E conforme saíamos dali, volto a ouvir o barulho do trânsito de Cabul ─ mas ainda consigo ouvir de longe a bela música que Negin está tocando.

Ela é um suspiro de esperança e resistência no Afeganistão.

Fonte: BBC