ESPORTE NACIONAL
Bauza explica como o time do São Paulo reflete a sua vida.
Técnico argentino diz que campanha tricolor na Libertadores é semelhante à sua trajetória.
Em 05/07/2016 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia
Coração. Entrega. Luta. Gana. Organização. Decisões. Exemplos.
Palavras-chave que, durante pouco mais de 30 minutos, saíram da boca de Edgardo Bauza, e traduzem sua vida pessoal e suas trajetórias como zagueiro e técnico de futebol. Mais do que isso. Explicam como o São Paulo saiu do fundo do poço para a semifinal da Taça Libertadores.
Na última sexta-feira, o técnico de 58 anos recebeu a reportagem do GloboEsporte.com no CT do São Paulo, local que, em áreas reservadas a jogadores, comissão técnica e funcionários, ganhou decoração especial este ano, a pedido do argentino.
– Há alguns cartazes com frases de coisas que eu não negocio. Por exemplo, a organização. A equipe não pode perdê-la, não se negocia. A entrega não se negocia. Qualquer coisa se pode perdoar, menos isso. No início, a entrega não era do meu agrado, mas hoje ela entrega tudo em cada partida, e isso me orgulha porque mostra como foi e é minha vida. Acredito que quem luta por algo pode conseguir – explicou o treinador.
Bicampeão da Libertadores (em 2008 pela LDU, do Equador, e 2014 pelo San Lorenzo, da Argentina), Bauza está a quatro jogos do tri. Do tetra do São Paulo, que, nesta quarta-feira, receberá o Atlético Nacional, da Colômbia, na primeira partida da semifinal. Sem Ganso e sem Kelvin, ambos machucados. Contratempos que se somam à coleção tricolor neste torneio.
Para chegar a ser um dos quatro melhores, a equipe superou derrota em casa, discussões no elenco, protestos de torcida, suspensões, lesões, altitude... Teve até zagueiro no gol. Uma campanha que, segundo Bauza, reflete exatamente o que foi e é a sua vida: uma luta.
Leia abaixo a entrevista:
Pouco antes de anunciá-lo, em dezembro, o Leco (presidente do São Paulo) disse que contrataria um técnico com histórico de superar momentos difíceis e transformá-los em vitórias marcantes. Isso pode resumir a campanha do São Paulo nesta Libertadores?
(risos) A campanha desta Libertadores com o São Paulo, sim, reflete isso. Mas toda minha vida foi assim, uma luta. Nunca fui um jogador superdotado, com grandes qualidades, mas fui um jogador com um coração e uma entrega muito grandes. Isso me fez conquistar muito mais coisas do que eu imaginei, até estar com a seleção argentina numa Copa do Mundo (Bauza não entrou em campo, mas fez parte do grupo vice-campeão em 1990, quando a Alemanha venceu a final por 1 a 0). Isso é um pouco de como foi a minha vida, a dos meus pais, que trabalharam toda a vida para construir uma casa, dar estudos a mim e a meu irmão. Esses exemplos me formaram e eu sigo trabalhando com a mesma gana, tratando de que as coisas saiam bem. Esse é o desejo.
Em muitos momentos, o torcedor pensou que não daria para chegar tão longe. A derrota na estreia, o jogo na altitude, expulsões, os 2x0 do Atlético no começo do jogo... E o São Paulo avançou até aqui. Agora vocês convivem com perdas importantes, de Ganso e Kelvin. A trajetória do time é o combustível para não se abater?
Este esporte me ensinou que não posso me encostar nos problemas. Eles formam parte desse esporte porque os atletas são seres humanos normais. Eles têm a virtude de serem futebolistas, mas têm problemas como qualquer um, então sempre há inconvenientes. Como treinador, tenho de estar preparado para isso. São acidentes lamentáveis, mas acontecem, e fazem com que minha cabeça se ponha a pensar em como solucioná-los para que a equipe tenha as mesmas possibilidades. Está bem que o torcedor pense assim. Ele vai ao estádio apoiar a equipe, e todas as coisas que acontecem depois mudam seu humor para melhor ou pior. Digo ao torcedor que teremos duas partidas duríssimas contra o Atlético Nacional, duríssimas, mas daremos tudo para chegar à final, que é o primeiro passo.
Sua vida familiar e sua trajetória como jogador fizeram com que você, como técnico, trabalhasse tanto o talento como o coração de seus atletas? São tão importantes quanto?
Claro que é importante, e tudo que eu vivi transmito a eles. E os atletas que não se sacrificam e não me demonstram terem gana, ficam fora. Na minha equipe, os que têm mais gana vão jogar, os que não têm ficam fora. É uma regra muito clara. Há por dentro do CT alguns cartazes com frases de coisas que eu não negocio (veja abaixo). Por exemplo, a organização. A equipe não pode perdê-la, não se negocia. Entrega não se negocia. Qualquer coisa se pode perdoar, menos isso. A equipe adotou isso e será importante porque não se pode jogar bem todas as partidas, mas a organização e a entrega ajudam.
Essas frases foram espalhadas a seu pedido?
Sim, porque são fundamentais. Todas as equipes do mundo têm uma organização, e a partir dela constroem uma partida. É fundamental. E depois a entrega. No início, a entrega não era do meu agrado. Não que os atletas não se entregassem, simplesmente não era do meu agrado. Mas aos poucos construímos uma equipe com entrega maior. Hoje, ela entrega tudo em cada partida, e isso me orgulha porque mostra como foi e é minha vida. Acredito que quem luta por algo pode conseguir.
Nos jogos da Libertadores em que você atuou sem o Ganso, alterou o esquema para o 4-1-4-1, com três volantes. É possível substitui-lo simplesmente por um jogador, ou por não haver outro com suas características, é preciso mudar a forma de jogar?
Com ou sem o Ganso, não vamos modificar o sistema tático, pelo menos no Morumbi. Depois vamos ver em Medellín. Não há um jogador no plantel que possa substituir e jogar da mesma maneira que o Ganso, então eu teria que eleger entre duas ou três opções. Há acidentes neste esporte que não se pode evitar. Ele teve um estiramento num músculo, estão tratando.
Parece que vocês não conseguem ter uma alegria por muito tempo, não é? Um dia depois da ótima notícia da permanência do Maicon, você recebeu a lesão do Ganso.
Já estamos preparados para isso. Por isso não me alegro muito, não expresso demasiada alegria quando ganhamos nem fico amargando muito algo ruim. Ponho minha cabeça em movimento e penso para encontrar soluções, para isso estou aqui. Sou a cabeça do grupo e devo tomar decisões para solucionar problemas.
Mas a contratação do Maicon foi um alívio, não?
Sim, é uma tranquilidade que ele possa ficar conosco porque senão teríamos que buscar outro zagueiro, com todos os problemas que isso implicaria. Ele está muito bem adaptado, a equipe está bem adaptada a ele, é uma tranquilidade para todos.
Há perspectiva de outros reforços para o São Paulo?
Para a Libertadores é complicado porque falta muito pouco tempo, mas estamos vendo com a diretoria. Creio que vamos incorporar mais um ou dois jogadores, mas não há nada definido. Estamos vendo o Campeonato Brasileiro e jogadores do exterior.
Há muito jovens hoje no elenco: Lyanco, Matheus Reis, Artur, Luiz Araújo. Você acredita que eles podem se firmar e se transformar em grandes jogadores no São Paulo?
Todos que estão aqui. E faltou o Lucas Fernandes, que, desgraçadamente, teve uma lesão importante e vai demorar cinco ou seis meses para se recuperar. Ele já estava pronto. Os demais estão trabalhando, alguns jogando mais vezes, como o Artur. São muito bons jogadores, confio muito neles e creio que têm grandes possibilidades, não somente de ficarem, mas de serem jogadores que darão muita satisfação.
Confia a ponto de escalar o Luiz Araújo numa semifinal de Libertadores, no lugar do Kelvin?
Vamos ver, numa semifinal de Libertadores a carga emotiva é muito alta. Tenho que resolver se dou oportunidade, mas não descarto.
O São Paulo hoje é um clube agradável para se trabalhar? Você está mais confortável, sente-se mais à vontade do que nos primeiros meses?
Estou tranquilo e confortável porque o clube facilitou todas as coisas para eu poder trabalhar. O clube me fez sentir muito confortável. Minha família está muito bem, faz seis meses que estamos trabalhando muito satisfeitos. Queria estar bem melhor pela exigência e história do São Paulo, mas acredito que estamos num bom momento, e de ansiedade porque seria um sonho lindo poder jogar a final da Libertadores. Oxalá possamos conseguir.
É muito diferente para vocês chegar ao Morumbi com aquela praça vazia, fria, das noites em que há um corredor iluminado, milhares de pessoas à espera. Muda muito?
É óbvio que sim. Isso já começa a motivar o atleta. (quarta-feira) Vai haver 65 mil pessoas que vão torcer, apoiar, e a equipe vai dar tudo para ganhar, apesar das dificuldades que vai encontrar no rival. O grito da torcida será importante.
A contratação do Lugano foi cercada de muitas opiniões divergentes. Alguns queriam, outros não. Alguns achavam que ele nem jogaria, outros defendiam que em campo ele também seria importante. De que maneira ele tem te ajudado, dentro e fora de campo?
A chegada do Lugano à equipe teve duas facetas importantíssimas. Primeiro futebolisticamente, por tudo que ele transmite, por sua história e tudo que ele pode dar. Depois pela liderança que ele assume e tem cada vez que joga, em campo, e nos treinamentos, na vida cotidiana. São jogadores realmente muito importantes. Ele jogou mais partidas do que muita gente pensava. Essa partida da Libertadores ele não vai jogar, mas não sei se não poderá jogar em Medellín. Estou seguro de que se precisar jogar, vai transmitir tudo isso, essa história tão rica que ele tem.
Patón, por que a seleção do seu país, a Argentina, não consegue ganhar títulos mesmo tendo jogadores brilhantes?
É mais complicado. É muito difícil para alguém que não pode estar lá permanentemente falar de colegas. O que sei é que (Tata) Martino é muito bom técnico. Foi importante ter chegado à final. Essa análise quem têm de fazer são os atletas e o técnico, e tirarem as conclusões pelas quais não puderam ser campeões. Segue sendo uma seleção de primeiro nível.
O que você sentiu quando viu o Messi perder o pênalti e sofrer daquela maneira?
Uma pena porque é um jogador que tem tanta técnica, e entrou muito por baixo da bola, e ela saiu por cima do travessão. Me deu pena porque é um jogador que, por tudo que deu à seleção, merece um campeonato. Esteve não perto e não pôde conquistar. Então me dá muita pena porque ele merece ser campeão.
Acha que a decisão dele de abandonar a seleção é definitiva?
Nunca se sabe, espero que não. Creio que ele tenha dito num momento de muita frustração. Eu tive outros tipos de frustração no futebol que te deixam devastado, muito mal. Oxalá ele possa ter mais três ou quatro anos na seleção para dar tudo que pode futebolisticamente.
Ter sido cortado da Copa de 1982, depois de ter feito parte do grupo inicial, foi a maior frustração de sua carreira?
Não. Deixou mal porque tive muito tempo concentrado, mas pude estar no Mundial de 1990. Por mais que eu não tenha jogado, foi uma satisfação enorme, coroou uma carreira. A maior frustração é perder campeonatos ou partidas importantes que você se prepara para ganhar, dar o melhor.
Depois da vitória sobre o Fluminense, na semana passada, todos comentaram seu nervosismo na entrevista coletiva, e eu fiquei pensando: ele acabou de perder o Ganso para a Libertadores, não deve ser fácil se controlar minutos depois.
Não é fácil (risos). É uma profissão realmente complicada a nossa porque vivemos tomando decisões permanentes que mudam o humor e a situação de todo mundo. Temos que estar tranquilos para ver bem as coisas, é o que eu trato de fazer, mas às vezes alguém ultrapassa os limites e eu fico louco.
Patón, o que tinha na água que vocês deram aos jogadores do Brasil em 90 (a Argentina eliminou a seleção brasileira nas oitavas de final com uma vitória por 1 a 0, e anos depois, Maradona disse que o massagista argentino deu uma água com sonífero para o lateral-esquerdo Branco tomar durante o jogo)?
Isso é um mito! Isso é um mito! Para mim, o Brasil perdeu a partida no campo. Teve mais de 10 oportunidades: na trave, no Goycochea (goleiro da Argentina). Houve um momento em que o Brasil dominou o jogo. Perderam três ou quatro gols incríveis, e depois num erro, porque quando o Maradona faz a jogada teriam que ter matado e não mataram. E quando deixam vivo um jogador como ele, faz o que fez, um passe magistral para o Caniggia definir. No primeiro tempo, o Brasil teve chances muito claras para ganhar.
Maradona é a coisa mais impressionante que você viu de perto no futebol?
Como jogador, dos que eu vi, sim. Mas eu também vi Cruyff, Pelé, eram outras épocas. Não se pode comparar. Com Maradona eu vivi porque jogamos juntos no juvenil em 1976. Então eu o conheço muito bem. Dos jogadores que pude ver e jogar, foi o melhor. Hoje, para mim, não digo que o Messi seja o melhor, mas é quem mais desequilibra.
E qual é a diferença entre quem mais desequilibra e o melhor?
O momento em que jogou o Maradona é diferente ao do Messi. No Maradona deram 300 “patadas" (termo para se referir a entradas duras) a mais que no Messi. Agora, o fair-play, por sorte, ajuda que o futebol não seja tão violento. E se no Maradona deram 300 a mais, no Pelé deram 600 porque foi antes ainda. Hoje, graças a Deus, não se pega tanto. Joga-se noutra velocidade, treina diferente. Mas eles são jogadores diferentes.
Maradona, no juvenil, já tinha um temperamento indomável?
Sim, era um jogador de temperamento forte, mas típico dos jogadores argentinos formados em divisões menores. O mais importante era o que ele fazia com a bola.
Você é o tipo do técnico que chega em casa e vai assistir a jogos da Euro e da Copa América ou tenta se desligar um pouco do futebol?
Eu vejo tudo (risos). E trato de dividir com a família. O Campeonato Brasileiro é muito tirano para isso. São quatro dias entre jogos e concentração, passo mais tempo no CT do que em casa (risos). Mas quando estou com a família divido tudo que posso. O futebol me toma muito tempo, então, quando eles estão dormindo, saio de perto e aproveito uma ou duas horas para ver vídeos, programar semanas de treinamentos.
Você dorme pouco?
Sim, seis ou sete horas no máximo.
E tem um filho pequeno, não é?
Sim, tenho um filho de quase três anos. Tenho dois grandes, e agora um de três anos que é o que me mantém vivo (risos).
O Brasil é um bom lugar para ele crescer?
O crescimento não se dá somente pelo lugar, mas também pelos pais e os lugares que frequentam. Meu filho está feliz com os amigos na escola, eu e minha esposa estamos marcando seu caminho para que ele tenha uma vida como a que eu tive. Eu sempre disse que meus pais não me educaram falando, e sim com exemplos dados todos os dias: o trabalho, a responsabilidade, a importância da palavra. Todas essas coisas que transmito a meus filhos para que no dia de amanhã sirvam a eles.
Foram esses exemplos que o levaram a ser líder num partido socialista quando era jovem? A política ficou de lado quando o futebol virou protagonista na sua vida?
Foram esses exemplos, obviamente, sou um produto da formação. Nasci e cresci em Granadero Baigorria, uma cidade pequena, e tratamos com um grupo de pessoas para implantar uma ideia nova, mas nunca deixei o futebol. Nos momentos livres, eu ajudava, mas a política sempre me interessou porque me interessa que eu, meus filhos, minha família, os amigos e toda a gente viva melhor. Todos nós devemos nos interessar para podermos viver melhor.
Já que você assiste a tudo, o que viu de diferente na Euro e na Copa América?
Taticamente não vi nada novo. A verdade é que absolutamente nada me surpreendeu. Alguns jogadores importantes estão aparecendo, mas taticamente não vi nada nos dois campeonatos diferente do que vemos normalmente.
Acredita que a seleção brasileira vai melhorar com o Tite?
Acredito que tenha sido uma muito boa escolha depois da saída do Dunga. Ele merecia por seu currículo e pelo que vem dando às suas equipes. Ele vai ter um trabalho muito duro para implantar sua ideia. Eu a conheço e gosto. As equipes do Tite são bem organizadas, equilibradas, difíceis de enfrentar. Será um trabalho árduo armar a seleção que ele tem. E um começo muito duro porque tem de jogar contra o Equador na altitude de Quito. Não é fácil.
Alexandre Pato tem lugar no seu time?
Alexandre Pato é um jogador que saiu quando eu cheguei. Eu sei que ele tinha vontade de ficar na Europa. Se houver alguma possibilidade de trazê-lo, eu gostaria de contar com ele, mas não depende só de mim. Depende dele. Que técnico não gostaria?
Sua chegada trouxe mais “jerarquia” (expressão que Bauza usa para definir jogadores de currículo vencedor, peso, que imponham respeito) ao São Paulo?
Não sei se “jerarquia”, sei que a equipe agora tem uma identidade, e essa identidade nos levou a estar entre os quatro melhores da América. Gostem ou não, está entre os quatro melhores. E essa identidade fez com que o torcedor nos visse com mais entusiasmo, mais contentes. Já temos uma identidade, agora temos que seguir trabalhando para que a equipe possa crescer mais. É o caminho em que estamos, e eu acredito que ela pode crescer mais.
Globo Esporte