ESPORTE INTERNACIONAL

Sem contato do COI, judocas refugiados mantêm esperança em vaga olímpica.

Os judocas congoleses refugiados no Brasil desde 2013 têm contado sua história.

Em 15/03/2016 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

A agenda de entrevistas de Popole Misenga e Yolande Bukasa é concorrida. Os judocas congoleses refugiados no Brasil desde 2013 têm contado sua história a jornalistas do mundo todo, de quem costumam ouvir que "já estão na Olimpíada" do Rio de Janeiro. Conforme se aproximam os jogos, no entanto, a ansiedade só cresce, porque ainda não houve qualquer contato do Comitê Olímpico Internacional (COI) garantindo que eles estão ao menos entre os candidatos a integrar a delegação de refugiados que foi anunciada no último dia 3.

"Estamos esperando", conta Popole, de 23 anos. "Como muita gente vem fazer entrevista, de muitos países, e fala que já estamos lá, a gente ainda acredita".

Acolhidos pelo Instituto Reação, na zona oeste do Rio, os dois treinam desde abril do ano passado com o objetivo de disputar a Olimpíada. O treinamento, no entanto, já deveria ter sido intensificado, o que depende de uma definição mais concreta de suas possibilidades de competir. "o atleta tem que treinar duas vezes por dia para chegar à competição. Precisamos começar a treinar mais forte", diz Popole.

Responsável pelo treinamento de Popole e Yolande, o sensei Geraldo Bernardes, de 73 anos, concorda. "Quando tivermos a certeza de que eles realmente vão, vamos aumentar a carga de treinamento. Porque até para aumentar essa carga, tem que ter uma alimentação de melhor qualidade e outro tipo de suporte".

Popole e Yolande recebem cestas básicas e passagens de ônibus para treinar, mas vivem em situação de dificuldade financeira. Sem comprovantes de escolaridade e ainda com deficiências no português, eles não conseguem emprego formal e fazem trabalhos temporários como descarregar caminhões para se manter na favela Cidade Alta, na zona norte do Rio. Popole se casou e tem uma filha de 1 ano. Yolande vive de favor na casa de uma família formada por casal e três filhos.

"Durmo na sala, no chão. Eu não pago nada, mas divido a cesta básica com eles. Mês passado, minha amiga falou muito que eu tinha que dar algum dinheiro. Conversei com o sensei e ele me ajudou", conta Yolande, que tem 28 anos e está desempregada.

O sonho de lutar na olimpíada exige sacrifícios que se tornaram outra dificuldade na hora de buscar trabalho. Com duas horas de treinos diários, em Jacarepaguá, Popole conta que fica difícil trabalhar.

"O mais importante para mim é o judô. Se eu sair às 18h, 19h, até chegar em casa e até chegar aqui [no Instituto Reação], não dá tempo. Tenho que escolher entre ganhar R$ 40 em um dia carregando, ou lutar judô", lamenta o atleta, que tenta equilibrar as contas atrasadas, fazer exercícios sozinho para se preparar e focar no treino.

"Eu venho treinar aqui e estou devendo em casa, faltando comida para minha filha. É muito difícil treinar assim. Você não pode ficar aqui pensando que vai voltar e a pessoa vai expulsar a sua família de casa".

Resposta só em junho

No início deste mês, o Comitê Olímpico Internacional confirmou que a Olimpíada deste ano será a primeira a ter uma delegação formada apenas por refugiados, de diversas nacionalidades, que competirão como o 207º país nos jogos. O COI informou que 43 candidatos foram identificados, e que a delegação terá entre cinco e dez vagas. Os escolhidos serão anunciados em junho, quando está marcada uma reunião da diretoria executiva da entidade.

A Cáritas chegou a ser procurada pelo comitê no início do ano passado e, como havia dado assistência a Popole e Yolande quando chegaram ao Brasil, sugeriu seus nomes. Desde então, no entanto, não houve mais contato. Foi a entidade que encaminhou os dois para o Instituto Reação, onde também não chegaram novidades a respeito da seleção para os jogos. A Agência Brasil perguntou ao COI sobre os atletas, mas não obteve resposta.

"Eles evoluíram bastante. Com o nível dos nossos atletas, o treinamento é forte e puxado visando à olimpíada, para dar a eles uma condição boa de participar das lutas", conta Geraldo, que esteve na comissão técnica brasileira em quatro olimpíadas, entre Seul (1988) e Sidney (2000), e treina atletas que disputam vaga na seleção brasileira, como a campeã mundial Rafaela Silva.

Guerra civil

Yolande e Popole chegaram ao Brasil para uma competição internacional de judô em 2013, mas contam que foram abandonados no hotel pela comissão técnica de seu país, sem direito sequer a refeições. A República Democrática do Congo vivia uma guerra civil, e eles conseguiram o refúgio no Brasil. O conflito continua e foi o mesmo que mudou drasticamente a vida deles ainda na infância.

Yolande lembra que tinha acabado de chegar da escola, com 10 anos, e brincava na rua ainda com o uniforme quando começou a ouvir estrondos de bombas e tiros. A guerra civil havia chegado à cidade de Bukavu, onde morava.

"Escutei um barulho veio chegando muita gente correndo. Tentei voltar em casa, mas disseram para não ir. Fugi com outras pessoas e, depois, veio um helicóptero e todas as crianças entraram", conta ela, que foi levada para a capital e nunca mais voltou a ver os pais ou qualquer familiar.

Além de mortes e tiros, a memória de Yolande guarda outros testemunhos de violência, que ela considera ter sido ainda mais brutal contra mulheres: "Na guerra, vi os homens pegarem as mulheres e fazerem besteiras. Eu, quando criança, vi uma coisa que nunca posso esquecer. Vi 15 homens, 20 homens pegarem uma mulher".

Popole fugiu da mesma cidade que Yolande, com 6 anos, e também perdeu o contato com a família. "No dia em que começou a guerra, eu estava em casa, minha irmã estava na escola, meu pai estava no trabalho. Começou a cair muita bomba, queimando casa, tiro. Quando saí de casa, vi muitas pessoas correndo e fui atrás, e elas iam caindo mortas pelos tiros".

O congolês fugiu para a floresta e fez uma caminhada de dias, até que fosse resgatado por um barco, segundo ele, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Na capital da República Democrática do Congo, Kinshasa, os dois começaram a treinar judô em programas sociais direcionados a refugiados e se tornaram atletas de nível internacional, o que permitiu sua vinda ao Brasil em 2013.

Geraldo conta que a forma de treinamento que Popole e Yolande trouxeram reflete o modo autoritário com que relatam ter sido tratados em sua vida de atleta de alto rendimento.

"Quando eles lutavam, tinham que ganhar, se não ganhassem eram castigados e ficavam presos. Isso fez com que o espírito deles fosse o de sempre ser o ganhador e isso, no início, criou problemas de relacionamento com os meus atletas", conta o técnico, que ajudou os congoleses a superar a questão. "Eles passaram a entender melhor o fair play do judô".

Sonho olímpico

Popole acredita que participar da olimpíada pode ser um caminho para conseguir viver e sustentar sua família por meio do esporte.

"Quando um atleta se expõe na olimpíada, ele constroi uma relação de conhecidos, de patrocínios e agendamento de entrevistas. Estou passando necessidade para morar de aluguel, tenho minha mulher e minha filha".

Yolande acrescenta que os jogos poderiam mudar sua trajetória não apenas pelos ganhos financeiros. "É uma história que ninguém pode me tirar. Eu passei uma vida muito dura, eu lutei muito e quero me classificar para limpar minha cabeça, para ficar na minha casa sozinha, ficar como todo mundo e viver a vida financeira sem chorar com ninguem. Quero ter lembranças boas".

Agência Brasil