SAÚDE

1° hospital do país a realizar aborto legal tem serviço desativado

Hospital Saboya, na Zona Sul de SP, foi pioneiro nas interrupções de gravidez.

Em 21/12/2017 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Primeiro hospital a realizar os abortos previstos em lei no Brasil, o Hospital Municipal Arthur Ribeiro Saboya, popularmente conhecido como Hospital Jabaquara, na Zona Sul de São Paulo, deixou definitivamente de oferecer o serviço há cinco meses.

Até setembro de 2017, porém, o hospital ainda era indicado no site da Prefeitura como um dos centros médicos referendados no atendimento. A página só foi atualizada após a Defensoria Pública tomar conhecimento do encerramento e cobrar a alteração.

Nos cerca de 28 anos de funcionamento, realizou 240 dos 452 abortos legais feitos no município, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde.

Segundo justificativa apresentada pela Prefeitura à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o encerramento ocorreu por conta da aposentadoria dos profissionais que atuavam no programa e da transferência do serviço de obstetrícia e ginecologia para o Hospital Municipal Dr. Gilson de Cássia Marques Carvalho, na Vila Santa Catarina, também na Zona Sul.

O centro médico é administrado pelo Hospital Israelita Albert Einstein por meio de um convênio com a Prefeitura há dois anos.

A Prefeitura afirma que o Hospital do Tatuapé, que já realizava os abortos previstos em lei e o atendimento às vítimas de violência sexual, passou a fazer parte da rede referendada por conta da desativação do Saboya.

Em entrevista ao G1 por telefone, Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador da área técnica de saúde da mulher da Secretaria Municipal da Saúde, disse que a decisão foi tomada após conversas com gestores do território.

“O importante é que tenha em cada região do município um hospital de referência. Nessas discussões foi apontado que seria o Hospital do Tatuapé", afirma. "Não é uma imposição, é uma diretriz no qual a gente, junto com os gestores da região, procura qualificar qual que seria esse serviço de referência", complementa.

Ainda de acordo Aguemi, do ponto de vista de organização de serviço, o Hospital do Tatuapé está ligado à coordenadoria sudeste. "Não é uma lógica apenas geográfica, é administrativa", explica.

Desde 1940 a lei autoriza a interrupção da gravidez nos casos de gestação fruto de estupro e risco à vida da mulher. Em 2012, também deixou de ser considerado crime o aborto de feto anencefálico (sem cérebro).

A unidade fez parte do programa implantado 40 anos depois - somente no final da década de 80 - na capital paulista pela então prefeita Luiza Erundina.

Quase três décadas de atendimento

Funcionária equipe da multidisciplinar que inaugurou o programa, em 1989, a assistente social Irotilde Gonçalves Pereira, de 71 anos, trabalhou quase três décadas prestando atendimento às mulheres no Hospital Saboya. Sofreu preconceito, foi xingada, ameaçada e viu sua residência ser atacada por ovos inúmeras vezes.

Mas certa de estar à frente de um programa fundamental para a garantia dos mínimos direitos à população feminina, na década de 90 percorreu todas as capitais do Brasil levando sua experiência e buscando adesões em nível nacional.

“O Saboya era um hospital especializado em politraumatismo, mas foi o único que aceitou fazer. Isso era uma reivindicação dos grupos feministas, de mulheres organizadas, há mais de 20 anos. Quando eu vi essa chance, eu achei fantástica. Eu tive a oportunidade de trabalhar nesse serviço, e foi extremamente gratificante poder atender e acolher uma mulher”, diz.

Recorda-se da primeira paciente, uma adolescente de 14 anos, grávida após ser estuprada na rua, a conseguir interromper a gestação na unidade. Também não esquece dos avanços conquistados anos após o início do programa, como o fim da exigência do registro da ocorrência em caso de violência sexual.

“Felizmente caminhou um pouco bem e o Ministério da Saúde tirou o Boletim de Ocorrência. Certíssimo, pois temos que acreditar na fala da mulher. Quem atende, trabalha em um serviço desse, percebe claramente. A mulher chega naquele momento de todo o estresse. Você percebe o desgaste, a angustia e o medo de procurar o serviço. A falta de informação. Não precisa de um documento muito menos de contar uma mentira.”

Ela revela que no Saboya, mesmo quando o serviço de interrupção da gestação era paralisado por falta de médicos, o acolhimento às mulheres e encaminhamento seguia sendo feito.

Irotilde recebeu a notícia da desativação definitiva pouco antes de se aposentar, em fevereiro deste ano, e lamenta que o serviço não tenha sido incorporado pelo centro médico que assumiu a obstetrícia e maternidade na região.

“Eu particularmente fiquei muito triste, desolada quando não passou todo o atendimento para lá, não acompanhou. Eu passei uma vida dedicada a isso. Para mim foi muito triste, mas eu espero que ele volte, que outros serviços surjam”, afirma. “Foi uma grande perda para as mulheres”, completa.

Na avaliação de Ana Rita Prata, defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, a descontinuidade é consequência do desinteresse do poder público e do preconceito da área médica.

“É um fechamento bastante simbólico. Um fechamento por uma justificativa de que o profissional, as pessoas que trabalhavam ali, e eram comprometidas com a questão, se aposentaram e por isso o serviço não permaneceria. Isso demonstra o quanto as políticas públicas são frágeis no nosso país’, afirma a coordenadora.

Em 2012, durante a administração de Gilberto Kassab, o serviço no Saboya chegou a ser desativado por falta de profissionais que aceitassem realizar tais procedimentos.

Segundo Irotilde, ele voltou a funcionar três anos depois, já na gestão de Fernando Haddad (PT), após a contratação de uma médica, a primeira ginecologista mulher a aceitar o cargo na unidade.

“Esbarra sempre na questão médica. É um problema que eu não sei quando vai acabar. Infelizmente, acho que não vou conseguir alcançar”, lamenta. “É difícil essa contratação de alguém que vista essa camisa”.

Apesar da descrença, enquanto não vê a descriminalização ser conquistada no Brasil, ela defende a ampliação do serviço e a manutenção do direito já existente.

“Não tenho nenhuma notícia de que uma mulher morreu ou ficou com sequelas em um abortamento previsto por lei. E quantas mulheres a gente perde em um aborto clandestino? E quando uma mulher morre é um prejuízo muito grande não só para aquela família, mas para toda a sociedade. (...) Não apoiar essa mulher é que deveria ser considerado crime.”

Irotilde conta que deixou o cargo que ocupava por questões familiares. À época, pediu aposentadoria, mas hoje deseja retomar o trabalho que exercia na rede municipal de saúde. “Eu gostaria muito de voltar para hospital. Eu contribui e acho que ainda consigo contribuir muito.”

“Eu acho que na verdade eu nem tenho mais idade para prestar concurso público. Não sei como poderia se dar. Por enquanto estou contribuindo em ONGs. No que depender de apoiar as mulheres eu vou estar sempre.”

Fiscalização

O Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo investiga irregularidades e falhas no serviço de abortamento legal no município desde o final de 2015. Com a mudança na administração, a Defensoria iniciou um novo diálogo com a Prefeitura e, em julho, tomou conhecimento do encerramento no Saboya.

“Foi esse processo que a gente fez e com isso acabamos tendo a ciência do fechamento do serviço de abortamento do Hospital Jabaquara. E aguardamos a devolutiva da Prefeitura no sentido de qual equipamento vai acolher às mulheres da região”, afirma Ana Rita.

“É uma provisão legal, e não deveria depender da disponibilidade pessoal de ninguém, mas sim da garantia e de um esforço, no caso, do município, em garantir que essas mulheres sejam acolhidas e tenham seu direito respeitado.”

(Foto: Celso Tavares/G1)