Em 09/08/2018 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia
Depois de séculos de um verdadeiro monopólio, a carne pode ter finalmente encontrado um adversário à altura. A provocação não vem de hambúrgueres vegetarianos, tofu ou seitan, mas de laboratórios onde células animais estão sendo cultivadas artificialmente para criar pedaços que imitam (ou, dependendo da pessoa que fala, espelham) carne. Atualmente, tem muitos nomes – carne in vitro, carne artificial, carne cultivada em laboratório, carne limpa – e pode disputar por um espaço ao lado de comidas mais tradicionais. Sejamos sinceros: o tipo de comida que vem de animais vivos, abatidos para alimentação.
Os fabricantes de carne artificial, como o Just Inc. e Memphis Meats, querem fornecer ao consumidor uma carne equivalente à sua predecessora, que tenha gosto, aparência, sensação e cheiro exatamente iguais ao que você compra em supermercados hoje em dia, só que mais sustentável. Vai demorar algum tempo pra sabermos se isso se tornará realidade ou não. Mas há outra luta, mais urgente, esquentando entre a indústria pecuária e esses novos oponentes do ringue carnal. Então aperte os cintos e se prepare para ouvir loucuras, porque a guerra dos rótulos está prestes a começar.
Em fevereiro, a U.S. Cattlemen’s Association (Associação de Pecuaristas dos EUA) fez uma petição para o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), pedindo para o governo proibir empresas de carne artificial de usar palavras como carne (beaf e meat, em inglês). Em retaliação, sua rival, a National Cattlemen’s Beef Association (Associação Nacional de Pecuaristas de Carne Bovina), escreveu uma carta opondo-se à petição. Os fabricantes de carne cultivada em laboratório também eram contra, por motivos provavelmente óbvios. Em maio, um projeto de lei aprovado pelo Senado do Missouri incluía uma disposição que “proíbe a descrição enganosa de um produto como carne se não é derivado da criação de gado ou aves” e, em 1º de junho, o então governador Eric Greitens assinou e regulamentou a lei antes de renunciar ao cargo. A Food and Drug Administration (FDA, órgão americano de fiscalização de alimentos e remédios) marcou uma audiência pública na quinta-feira para ouvir opiniões sobre a carne artificial, incluindo como ela deve ser rotulada.
Essa não é a primeira vez que alimentos criados para imitar ou substituir comidas mais tradicionais enfrenta questionamentos sobre sua rotulação. Em 1869, a margarina foi inventada por um químico francês. Quando a substituta da manteiga começou a se espalhar pelos Estados Unidos, pecuaristas de leite se alarmaram. Na época, uma libra de manteiga (cerca de meio quilo) custava 25 centavos de dólar, e a margarina custava aproximadamente a metade. “Eu aumentaria tanto o imposto que a aplicação da lei destruiria completamente a fabricação de todo tipo falso de manteiga e queijo, do mesmo jeito que eu destruiria a fabricação de dinheiro falso”, declarou William Price, membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos pelo estado de Wisconsin. David Henderson, membro pelo estado de Iowa, comparou a margarina à poção das bruxas de Macbeth.
Eles convenceram o governo americano a taxar margarina a 2 centavos a libra e pressionaram contra o uso de corantes amarelos que faziam o substituto da manteiga parecer mais amanteigado. Em 1900, era proibido tingir margarina de amarelo em 30 estados e outros estados foram mais além, determinando que teria que ser tingida de um rosa desagradável. O Canadá proibiu inteiramente a venda de margarina até 1948.
O aumento de opções de comidas vegetarianas e veganas nos trouxe mais alguns exemplos de cópias e seus rótulos. Os leites de soja e de amêndoas têm sido um incômodo para o lobby da pecuária de leite há mais de 15 anos. A Soyfoods Association of America (Associação Americana de Alimentos à Base de Soja) fez uma petição para a FDA em 1997, pedindo permissão para chamar seu produto de “leite de soja”, dando início a uma longa batalha entre produtores de soja e pecuaristas de leite. Estes se opõem ao uso da nomenclatura leite para essas bebidas, mas até agora a FDA não fez nada para impedir que as marcas usem a palavra.
Mas a discussão da carne cultivada em laboratório é fundamentalmente diferente desses outros estudos de caso, porque, ao contrário da margarina e do leite de soja, ela é bioquimicamente idêntica à substância com a qual compete. O que torna esse debate do rótulo ainda mais estranho e complicado.
A briga do nome desses produtos logo fica bizarra, mas você pode resumir o debate a três perguntas principais: Quem determinará as regras, quem poderá usar a palavra carne e o que mais deveria aparecer no rótulo?
Comecemos pela jurisdição, pois é a parte mais sinuosa da discussão e podemos rapidamente concluí-la. Ambos o USDA e a FDA teriam alguma influência nessa discussão. Os dois órgãos lidam com comida, segurança e rotulação, mas seus escopos são um pouco diferentes. A FDA regulamenta remédios e suplementos alimentares, mas também é responsável pela certificação de que as comidas no mercado sejam “seguras para consumo, saudáveis, atendam a regulamentações sanitárias e sejam adequadamente rotuladas”. O USDA supervisiona a agricultura nos Estados Unidos e trata da segurança alimentar e etiquetagem de carne e produtos derivados dela. Um representante do Food Safety and Inspection Service (FSIS, Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar), setor da USDA, me informou que o FSIS “tem autoridade jurisdicional sobre rotulação de produtos alimentícios que contém carne bovina e de frango”.
Então, é quase um enigma saber quem vai ditar o rótulo da carne cultivada em laboratório, porque na verdade depende se você vê ela como carne. Do ponto de vista da produção, a carne artificial está mais próxima da fabricação em laboratório de remédios, suplementos e aditivos, o que qualificaria a FDA. Mas, do ponto de vista do produto final, se a carne criada em laboratório for parar nas geladeiras ao lado das carnes abatidas tradicionais, a impressão é de que o USDA deveria tomar conta.
Isso pode parecer uma burocracia entediante, e mais ou menos é, mas faria uma grande diferença para a briga com a indústria do gado. Esses dois órgãos tem históricos diferentes quanto a rotulação de produtos. A FDA permitiu que o leite de amêndoas e o leite de soja mantivessem seus nomes, apesar do lobby incessante e ações judiciais da indústria do leite. Recentemente, também deixou que o substituto da maionese da marca Just – sem ovo – usasse o termo maionese na embalagem, embora a própria FDA padronize a identidade desse molho como “comida semissólida emulsificada preparada com óleo(s) vegetal(is)... ingredientes acidificantes... e um ou mais ingredientes que contêm gema de ovo”. Essa decisão pode esclarecer como o FDA encara carne cultivada em laboratório, já que a Just também é um dos grandes nomes à frente dessa novidade.
Nenhuma dessas decisões passou despercebida pelos criadores de gado. Embora a U.S. Cattlemen’s Association e a National Cattlemen’s Beef Association não concordem quanto ao uso do nome carne pelos novatos, ambos prefeririam que o USDA ficasse encarregado. “O USDA tem um longo histórico de permitir apenas princípios legalmente defensáveis baseados na ciência”, afirma Danielle Beck, diretora de assuntos governamentais da National Cattlemen’s Beef Association. Na carta em que se opunha à petição da U.S. Cattlemen’s Association para proibir empresas de carne artificial de usarem a palavra carne, a associação rival escreveu: “Infelizmente, a FDA tem um histórico reconhecido de aplicar medidas caóticas e fazer vista grossa para a lei”.
Mas há uma contradição engraçada para a U.S. Cattlemen’s Association. Se ela quiser que o USDA seja o responsável, o produto precisa ser considerado carne. Mas ela não quer que o produto seja considerado carne.
De qualquer forma, parece que a FDA vai ser de fato a que vai conduzir esse debate. Na declaração em que anunciava a reunião da quinta-feira para ouvir comentários sobre a questão da carne de laboratório, o órgão deu a entender que seria ele que tomaria as decisões quanto aos rótulos desse alimento, dizendo que “ambas as substâncias usadas na fabricação desses produtos que usam tecnologia de cultura celular animal e nos próprios produtos que serão usados para comida estão dentro da jurisdição da FDA e seguirão os nossos requisitos aplicáveis reguladores e estatutários de segurança e rotulação alimentar”. Se ficar a cargo da FDA, os criadores de gado temem que eles não vão conseguir o que querem quanto a nomenclatura.
Mas o que eles querem, exatamente? Acontece que grupos diferentes do lobby dos pecuaristas querem coisas diferentes. Isso nos leva à segunda pergunta, que é menos burocrática e mais filosófica: O que é carne? A carne de laboratório é carne de verdade? Antes de tudo, deveríamos chamá-la de carne? Falei com empresas de carne cultivada em laboratório e elas foram claras quanto a resposta a essas perguntas: sim. “Nossos produtos se enquadram na definição estatutária de carne”, me informou por e-mail Eric Schulze, vice-presidente de produtos e regulamentações da Memphis Meats. “Vem de um animal? Tem a mesma composição bioquímica da carne? Se sim, então é carne”, disse Josh Tetrick, CEO da Just.
As empresas de carne artificial também apontam para definições oficiais existentes da palavra que tampouco excluem seus produtos. A definição de carne para a Federal Meat Inspection Act (Lei Federal de Inspeção de Carne) é: “a parte do músculo de qualquer gado, cordeiro, porco ou bode que é esquelética ou que pode ser encontrada na língua, diafragma, coração ou esôfago, com ou sem a gordura que a reveste, e as porções de osso (de produtos com osso, como T-Bone e Porterhouse), pele, tendão, nervo e vasos sanguíneos que normalmente vêm com o tecido do músculo e do qual não se separa no processo de limpar a carne”. Sem dúvida, essa definição é elaborada (e pouco apetitosa) mas nesse caso carne cultivada em laboratório a partir de células animais seria carne.
Claro que nem todo mundo concorda com isso. Warren Love, um dos membros da Câmara em Missouri por trás da lei que proibiria empresas como a Just e a Memphis Meat de usar o termo carne, diz: “O problema não é eles produzirem ou fabricarem isso, tanto faz, só não queremos que rotulem como carne, que tomem pra si essa palavra. Carne vem do abate de animal”. Criador de gado, Love afirma que, se o termo não for protegido, esses novatos do mercado podem diminuir a reputação que a indústria da carne construiu junto aos consumidores. “Acho que você provavelmente chamaria isso de proteger sua marca”, diz. “Sou um caubói antigo e eu visto a camisa da marca.”
A petição da U.S. Cattlemen’s Association para o USDA se concentra nesse argumento, em que pede para o Departamento criar uma nova regra que defina carne como “o tecido ou carne de animais que foram abatidos de maneira tradicional”. Mas isso, por si só, especificamente a parte do “abatidos de maneira tradicional”, não ficou claro na petição. Quando conversei com Lia Biondo, diretora de políticas de expansão da U.S. Cattlemen’s Association, ela me esclareceu: “De maneira tradicional significa abatido num abatedouro”. Mas o termo abatedouro não aparece no pedido da associação, e a preocupação de alguns é que esse “de maneira tradicional” pode ser ruim para a própria indústria. Sem uma definição clara, detratores temem que esse conceito pode impedir o uso de tecnologias avançadas no futuro. “Isso pode ser um obstáculo no uso de tecnologias inovadoras de reprodução de animais e edição de genomas”, afirma Beck.
Se você já se cansou disso tudo, você não está sozinho. No meio de todas essas definições longas e complicadas e de ginásticas mentais, é fácil perder de vista o objetivo desses rótulos. O motivo de a FDA e o USDA ter todos esses padrões e definições é para se certificar de que os consumidores não fiquem confusos. Quando eles pegam um produto cuja embalagem diz leite, manteiga, ovos ou maionese, eles deveriam poder consumir aquilo que acham que estão consumindo.
“Não queremos que uma pessoa vá comprar bacon e pegue um produto pelo nome e pela cara sem ler o rótulo. Aí chegam em casa e pensam: ‘Eca, isso foi criado em laboratório’”, diz Warren Love. “Apenas queremos que esse tipo de produto seja rotulado sem criar uma confusão para alguém que quer comprar a carne saudável e nutritiva.”
A grande questão aqui é o que os consumidores acham que é carne. Quando compram carne, o que eles acham que estão consumindo? O consumidor médio considera que carne animal é carne? Ele imagina a vaca indo para o matadouro? O músculo de um animal é carne? Ou é o resto de uma criatura viva? Se músculo é carne, então aquilo cultivado em laboratório é carne. Se é resto, não é carne. Não há dados sobre isso, então cada lado dessa briga pode presumir que sua resposta preferida é a correta.
“A gente vê isso o tempo todo: existe a imitação de baunilha, existe a baunilha de verdade”, diz Biondo. “Na minha casa, cozinho com baunilha de verdade. Imitação de carne de caranguejo e caranguejo de verdade, produtos muito diferentes, são rotulados dessa maneira. Não achamos que seja novidade pedir para essas empresas operar dentro da mesma lógica.”
Mas a questão é mais complicada. Caranguejo artificial (kani-kama) é feito a partir de um animal completamente diferente. A carne de laboratório é feita a partir do mesmo animal, só que de uma maneira distinta. Josh Tetrick, o CEO da Just, afirma que, em qualquer outra situação, nem estaríamos tendo esse debate. Pense nos carros elétricos, diz. O motor é completamente diferente do motor de combustão tradicional. Mas continuamos usando a palavra carro. “Você pode chamar um carro elétrico de carro? Claro que sim! É o maldito de um carro! Tem pneus e leva você de um lugar a outro! É feito de componentes que fazem um carro.”
A FDA não disse o que vai fazer quanto à terminologia carne, mas, se levarmos em conta seu histórico, não é de todo insensato supor que ela permita o uso desse nome por empresas de carne artificial. Se isso acontecer, a U.S. Cattlemen’s Association não ficará satisfeita. “Devo dizer que seria considerado uma derrota”, diz Biondo.
Mas a sua colega na National Cattlemen’s Beef Association não está preocupada com a palavra carne, e sim com outros termos que poderão ser adicionados à embalagem do alimento cultivado em laboratório. “Nosso maior objetivo é impedir que se chame carne limpa”, diz Beck. “A expressão carne limpa, para mim, não é baseada em fatos científicos, não é legalmente defensável, não serve para o consumidor e, no fim das contas, é pejorativa quanto aos produtos de carne tradicional.”
Isso nos leva à última grande pergunta da guerra dos rótulos. Partindo do princípio que o produto poderá se chamar carne (e creio que essa seja uma suposição plausível), que palavras e rótulos deveriam ser adicionados para esclarecer que tipo de carne é? Alguns defensores da carne de laboratório estão promovendo carne limpa, sob o argumento de que ela é melhor para o meio ambiente. Outros preferem carne cultivada em laboratório, menos controverso. Certamente, a FDA irá demandar rótulos adicionais na embalagem para explicar que esse produto não é feito do jeito que os consumidores estão acostumados.
Ainda não se sabe que termos serão esses, mas podemos procurar por pistas na decisão da maionese Just. Foi requisitado à empresa de Tetrick que explicasse de forma mais clara o que significava o “Just” (apenas, em inglês) da embalagem. Teria que aumentar e deixar mais evidente o termo “sem ovo” do rótulo e diminuir a logo, um ovo quebrado. Na questão da carne, é possível que se peça às empresas para acrescentar uma linguagem esclarecedora às suas embalagens, explicando que foi cultivada em laboratório. Também é possível que não seja permitido usar imagens de vacas. Provavelmente, as empresas colocarão os produtos com certos rótulos e estes serão revisados e corrigidos ao longo do tempo pela FDA.
E as empresas com as quais falei não se opõem a deixar claro o que é seu produto e de que forma é diferente do tradicional. Elas acreditam que estão criando algo que, no final das contas, o consumidor vai querer comprar. E esperam que as pessoas que querem carne mas não gostam da forma tradicional de abatimento e produção do alimento procurem suas marcas. “Queremos conversar sobre isso, é algo importante, impressionante, e os consumidores ficarão empolgados”, afirmou Tetrick. Schulze acrescentou: “Como somos novatos no mercado, sabemos que será muito trabalhoso introduzir nosso processo, nós mesmos e nosso produto a agências reguladoras, parceiros da indústria e consumidores. Nosso compromisso é com a transparência sobre nosso produto e como ele é feito”.
O que essas empresas não querem é que sejam legalmente obrigadas a usar esses termos e rótulos explicativos. Porque a ideia é que, uma hora, esse tipo de carne substitua os abatedouros. Tetrick afirma que ele espera um dia ver a carne cultivada em laboratório do lado da carne tradicional, sem nenhum tipo de ressalva.
Os grupos de pecuaristas dizem que não se importam que empresas como a Memphis Meat e a Just entrem no mercado, mas querem que elas sejam demarcadas como um produto separado. “Fico contente em competir por um espaço no prato com qualquer outro tipo de proteína, seja ele frango, hambúrguer de feijão preto, hambúrguer de planta que sangra e chia como se fosse carne de verdade, ou até o produto de laboratório, mas no fim das contas nosso objetivo é garantir aos consumidores informação suficiente para que tomem decisões bem fundamentadas”, disse Beck.
Até agora, esses produtos não estão disponíveis em muitos lugares, e poucas pessoas o provaram. Aqueles que testaram reconhecem que, por enquanto, a carne artificial não é exatamente igual à tradicional. “A sensação na boca era parecida”, afirmou um degustador de alimentos que provou o primeiro hambúrguer cultivado em laboratório, em 2013. “É similar à carne, mas não é tão suculenta”, disse outro. Nenhum dos afiliados a associações de pecuaristas com os quais conversei havia provado a carne artificial. Mas eles têm certeza que seu produto é superior e sempre será. E querem que a guerra dos rótulos transmita isso. Warren Love, membro da Câmara em Missouri, disse que provavelmente nem provaria a carne cultivada em laboratório se lhe oferecessem. “Não. Eu gosto de Coca-Cola. Gosto do que é real. Sou chato com comida. Eu nem como nuggets de frango. Eles são feitos de carne, mas são... Já vi como são feitos e não quero comer. Mas eu gosto de cachorro-quente e amo Spam (tipo de carne pré-cozida e enlatada).”