CULTURA

Competições de poesia crescem em SP e dão voz a artistas da periferia.

Chamados de slams, desafios estimulam criatividade dos participantes.

Em 20/03/2016 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

O que poesia e esporte têm em comum? Para os poetas que frequentam Poetry Slams – competição de poesia criada nos EUA que tem tomado as periferias e parte do Centro de São Paulo – mais do que você imagina. Reunindo pessoas das mais diferentes idades, etnias e classes sociais em nome do diálogo de opiniões, da arte e em clima de arena esportiva, o evento tem dado voz a artistas da periferia e pessoas marginalizadas.

Proporcionando um espaço democrático e regulamentado de expressão, os slams tornam-se verdadeiros palcos para os questionamentos das minorias e o levante de questões sociais. No entanto, o grande destaque dos eventos é sua capacidade de unir diferentes temas em um só espaço.

Para competir em um slam, cada poeta ou poetisa, usando roupas comuns e sem adereços ou ferramentas cênicas, deve se inscrever com no mínimo três poesias de autoria própria minutos antes do início do evento, normalmente realizados em ambientes públicos como praças ou centros culturais.

Nesta segunda-feira (21) é comemorado o dia mundial da poesia. Em São Paulo, o projeto Arte na Rua vai espalhar poemas em vários pontos da cidade; veja a programação

Eles então se apresentam por até três minutos ao público e a cinco jurados, tradicionalmente escolhidos da própria plateia pela organização do slam. Cada jurado dá uma nota de zero a dez. A nota mais alta e a mais baixa são, então, eliminadas, e se classifica à próxima fase quem tiver a maior média entre as três restantes. O vencedor da noite fatura o prêmio: normalmente, livros.

“A gente exclui a nota mais alta e a nota mais baixa, para evitar qualquer favorecimento”, explica a atriz, música e poetisa Roberta Estrela D’alva. Foi ela quem, em dezembro de 2008, trouxe a prática ao Brasil pela primeira vez, fundando o ZAP! Slam, em São Paulo. A onomatopeia, segundo ela, serve de sigla para o título ‘Zona Autônoma da Palavra’.

Desde então, junto do coletivo cultural Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Estrela D’alva promove o ZAP! a partir das 20h da primeira quinta-feira de cada mês, com exceção de Janeiro, em um ponto do Centro da capital paulista. “O diferencial do ZAP! é geográfico praticamente. Por ele estar no Centro, pessoas de todo tipo o frequentam. É um encontro de estilos e opiniões”, ela fala.

O evento tem início com um momento tradicional dos slams, em que qualquer um pode se apresentar artisticamente com poesias, monólogos e performances: o “microfone aberto”. Às 21h, começa a competição. A platéia interage o tempo todo.

Segundo Estrela D’alva, cada edição mensal de um slam consagra um vencedor que, em dezembro, disputa, contra até outros nove vencedores mensais, o direito de representar seu slam no torneio nacional, o Slam BR. O evento acontece também em dezembro, na capital paulista, e reúne poetas de slams realizados em todo o país.

Uma vez campeão nacional, o poeta ganha uma vaga na Copa Mundial de Poesia, realizada na França e que reúne artistas de 20 países. Em 2011, Estrela D’alva conquistou a vaga e representou o país na competição. Ela ficou em terceiro lugar na competição; o mais longe que um artista brasileiro já havia chegado até 2014.

Foi nesse ano que o poeta, ator e atual coordenador de cultura da Prefeitura de São Paulo, Emerson Alcalde, de 33 anos, ficou em segundo lugar no mundial “por uma diferença de décimos”, diz ele.

Slam da Guilhermina
Alcalde é fundador do segundo slam do Brasil, o Slam da Guilhermina, que acontece toda última-sexta feira de cada mês (também com exceção de janeiro), na praça Guilhermina-Esperança, ao lado da estação homônima do Metrô, na Zona Leste. Um dos mais frequentados da capital, o Guilhermina chega a reunir quase 100 pessoas ao redor de um lampião a gás, símbolo do evento, em noites de competição.

O Guilhermina começa também às 20h, com microfone aberto, e a competição tem início por volta das 21h. As regras são quase as mesmas do ZAP!, com excessão de uma: “Como muita gente costuma vir, tivemos de colocar um máximo de 20 poetas por noite”, relata o slam master, título dado aos mestres de cerimônia dos slams.

Esse sucesso com o público é resultado do crescimento dos Poetry Slams em São Paulo, diz Alcalde: “No começo, só tinha o Guilhermina e o ZAP!. No ano seguinte, tinha cinco slams. No outro, 10. Hoje tem, sei lá, uns 15? Você perde a conta. São tantos”, brinca ele, realmente por fora dos números atuais.

Segundo Estrela D’alva, a capital conta hoje com, no mínimo, 25 slams, espalhados por todas as regiões da capital paulista. No Brasil todo, seriam mais de 30. “Eu vejo uma expansão que considero positiva. A gente está em uma situação da educação em que qualquer coisa que chame atenção para a poesia é válida”, afirma.

O rapper, MC e poeta Lucas Afonso, de 23 anos, é um dos representantes dessa expansão. Atual campeão brasileiro pelo Guilhermina, ele organiza há pouco mais de um ano o Slam da Ponta, em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Sua primeira vez em um slam foi no ZAP!. Fã de Alcalde por seu desempenho no mundial, Afonso não esconde sua paixão pela prática.

“O Slam é um lugar de encontro, onde a gente pode discutir de tudo, democraticamente, ninguém é acima de ninguém, é de igual pra igual, é um espaço diferente, um espaço autônomo. De encontro e de reflexão”, diz Afonso.

No Ponta, as reuniões acontecem em toda primeira sexta-feira do mês, às 19h, com um tempo livre de confraternização. O microfone aberto e a competição seguem os horários dos slams veteranos, às 20h e 21h, respectivamente.

Diversidade
A auxiliar técnica de educação Mariana Félix, de 30 anos, frequenta slams desde 2013. Com poesias engajadas e ancoradas principalmente em temas feministas, ela enxerga nos slams uma forma de enfrentar o machismo em um contato direto com outros homens, geralmente maioria nos eventos.

“Eu nunca quis ser algo maior que os homens. Eu quero que nós tenhamos consciência de que somos iguais. Queremos os mesmo direitos civis, mesmos direitos sociais. Então, eu gosto de estar entre eles no slam e discutir essas questões porque esse é o espaço que não foi dado na sociedade”, afirma.

“A palavra tem uma força muito grande. Ela é transformadora. E é esse o nosso objetivo: tentar alcançar cada vez mais gente que nunca teve contato com essa arte”, diz a atriz e poetisa Andressa Fernandes, de 32 anos, que compete sob o pseudônimo de Deusa Poetisa. Segundo ela, o codinome é “uma afronta para os machistas”.

Andressa trabalha a junção de dois dos temas mais recorrentes dos slams em seus poemas: sexismo e racismo. Ela elogia o espaço proporcionado pelos eventos, mas critica o ambiente muito masculinizado que, segundo ela, acaba intimidando algumas poetisas. “Quando outra menina compete, até dá um apoio, uma moral pra você”, diz.

O professo de teatro Beto Belinatti, de 32 anos, é freqüentador do ZAP! Slam. Apresentando-se como um “branco, hétero, cisgênero e de classe-média”, ele afirma nunca ter passado pelas dificuldades que muitos freqüentadores do slam, de classes econômicas mais baixas ou vítimas de discriminação, já passaram. Mas explica que isso não o impede de participar do diálogo poético.

“Eu nunca fui parado pela polícia. Nunca fui discriminado. Mas eu também não sou ignorante. A gente vê os problemas sociais que estão aí, e eu acho que todo mundo vê”, afirma. “Acho que quem freqüenta o slam quer mais do que só o enfrentamento político. Estar aqui já é um ato político. Há espaço, também, para outros temas, outras formas de arte”, completa.

Aos 66 anos, o cabeleireiro Joilson de Matos não se intimidou pela idade baixa dos outros competidores ao participar do Slam da Guilhermina. Vizinho do evento, ele apresentou um de seus mais de 14 miil poemas - ele afirma guardar todo que escreve há 25 anos - de temática evangélica. “Eu gostei muito. O pessoal é todo alegre e a juventude nos inspira, né?”.

Do outro extremo das idades, a estudante Valquíria de Lima, de 14 anos, passou a frequentar slams depois de se envolver em um projeto cultural de seu colégio, relacionado à poesia. Ela admite o medo inicial de competir com gente grande, mas diz que “pretende ir sempre”.

“A gente fica um pouco nervoso e tal, mas logo percebe que todo mundo é poeta, sem ninguém ser menor ou melhor que ninguém e o importante é a gente se divertir”, afirma Valquíria.

Para Estrela D’alva, é essa junção de diferentes perspectivas de mundo que faz do slam especial. “A competição não é o que vale mais, não é quem ganha que importa, mas é quem apresenta a poesia. De qualquer forma, a poesia sempre vence”, conclui.