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Crise: Brasil mergulha a corrida pela vacina em caos político
Profissional verifica a qualidade das instalações de embalagem da fabricante chinesa.
Em 23/10/2020 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia
Bolsonaro rejeita imunizante chinês e governador paulista, Estados e oposição ameaçam acionar STF. Nova crise expõe descoordenação na pandemia e, de quebra, alimenta antivacinas.
A corrida pela vacina contra o coronavírus entrou de vez no centro da disputa ideológica encampada pelo presidente do Brasil. Jair Bolsonaro, um negacionista que abraçou a cloroquina no tratamento da covid-19 mesmo quando as pesquisas já apontavam a ineficácia do medicamento, agora evoca a ciência para justificar o cancelamento de um acordo de intenção de compra da vacina experimental do laboratório chinês Sinovac anunciado por seu ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello. O pano de fundo da decisão presidencial vai de teorias conspiratórias contra a China ―a base bolsonarista e até um dos filhos do presidente já chegou a chamar o coronavírus de “vírus chinês” ― à disputa política com o governador de São Paulo João Doria, que acordou a transferência tecnológica com a Sinovac e a tem usado como trunfo político. Doria tem intenções de disputar as eleições presidenciais de 2022.
Agora, o governador paulista e seu homólogos de outros Estados ameaçam acionar a Justiça pelo direito de usar o imunizante chinês. O caos político expõe mais uma vez a descoordenação nacional e a falta de liderança no combate da pandemia no país enquanto Bolsonaro, de quebra, alimenta as teorias conspiratórias dos antivacina. Especialistas veem efeitos concretos e negativos da disputa numa corrida ainda cheia de incertezas científicas e lamentam que o Brasil desperdice a experiência do SUS em vacinação, uma competência reconhecida mundialmente e que ajudou o país a se tornar um dos principais palcos de desenvolvimento da vacina.
No momento, há quatro vacinas em estágio avançado de testes no Brasil, mas até agora nenhuma delas publicou resultados que comprovam sua capacidade de imunizar contra a covid-19. Por enquanto, os avanços que vêm sendo divulgados se referem aos indícios de segurança para os usuários que participam dos estudos e à produção de alguma resposta imune. Mesmo assim, a vacinação contra a covid-19 no Brasil ―segundo país que mais concentra mortes do mundo― foi colocada no centro de uma controversa disputa política. Nesta quarta-feira, o presidente Jair Bolsonaro chamou a vacina da Sinovac de “vacina chinesa de João Doria”. Reafirmou o que já é previsto pela legislação brasileira: que qualquer vacina só será disponibilizada à população quando houver comprovação científica e registro na Anvisa, mas adiantou a decisão de não adquirir o produto da Sinovac pelo menos por enquanto.
“O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou sua fase de testagem”, argumentou o presidente. O Governo dele, porém, já tinha aberto crédito de milhões de reais para um acordo de aquisição de doses e transferência de tecnologia da vacina experimental da Astrazeneca, que igualmente está na fase de testes no Brasil. Também já havia investido recursos públicos para potencializar a produção da cloroquina pelo Exército. Na semana passada, seu Governo também anunciou supostas conclusões de que um vermífugo seria eficaz no tratamento contra a covid-19, sem apresentar, em dados, resultados dos ensaios científicos. “Lá atrás destinamos recursos a Oxford, não para comprar vacina, mas para participar de pesquisa e desenvolvimento com uma cota de vacina para nós. Nada será despendido agora com uma vacina chinesa que eu desconheço”, disse Bolsonaro.
Nova crise
A reação de Bolsonaro abriu uma nova crise no combate à pandemia no país e não poupou nem mesmo seu ministro, o militar Eduardo Pazuello. Nas redes sociais, seguidores do presidente o acusavam de traidor. Com diagnóstico confirmado de covid-19 nesta quarta-feira, Pazuello não fez aparições públicas, mas convocou sua equipe para aplacar a crise. O Ministério da Saúde emitiu nota dizendo que houve uma interpretação equivocada das palavras do ministro, que no dia anterior anunciou acordo de intenção de compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac. E coube ao número dois da pasta, Elcio Franco, ir à imprensa dizer que não há intenção do Governo nem compromisso com São Paulo para efetuar a compra.
Não demorou para que outros governadores reagissem à posição do Governo federal: prometeram até acionar a Justiça e o Congresso enquanto defendiam que as decisões nacionais sobre a futura imunização da covid-19 se pautassem na ciência e não na ideologia política. O Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde ―que havia solicitado a compra da vacina da Sinovac ao Ministério para sua nacionalização― também emitiu nota.
“Seja qual for a vacina, independentemente da sua origem ou nacionalidade, o interesse público sobre o assunto diz respeito à sua eficácia e segurança para todos os usuários do SUS”, argumenta.
Toda essa briga política em torno da disponibilização de uma vacina é atípica no Brasil, afirmam pesquisadores. Os institutos Butantan (Governo de São Paulo) e Bio-Manguinhos (Fiocruz/Governo Federal) ―respectivamente responsáveis pelas vacinas da Sinovac e da Astrazeneca― são responsáveis pela produção de cerca de 75% das vacinas distribuídas no país que é referência internacional em imunização. Historicamente, fazem acordos para transferência de tecnologia para garantir a vacinação em massa. Mas, durante a pandemia do coronavírus, a falta de coordenação nacional e as divergências políticas também perpetraram as negociações sobre as futuras vacinas.
O governador João Doria fez o acordo com a Sinovac sem uma negociação prévia com o Ministério da Saúde. Tem autonomia para fazê-lo, mas dessa forma, mesmo que a vacina seja registrada pela Anvisa, só poderá ser distribuída no Estado. A única maneira de entrar no programa nacional de imunização do SUS é via ministério. “A gente perde muito com essa ação descoordenada. Estudos já apontam que é a combinação de várias vacinas que deverá garantir a imunização maior da população”, explica a doutora em Saúde Pública e professora da FGV, Elize Massard da Fonseca.
“Essa disputa política do governador de São Paulo com o presidente é uma novidade nesse arranjo do SUS”, emenda.
Disputa política rouba foco da ciência
A crise política no Brasil volta a ganhar protagonismo na crise sanitária justamente num momento em que o mundo mergulha na corrida por uma vacina. Nem mesmo os países que conseguiram desacelerar o contágio, de fato, controlaram a pandemia.
“Nenhum país hoje está em posição de negar uma estratégia vacinal aprovada em fase três (fase que busca identificar segurança e eficácia a humanos). Essas manifestações têm cunho politico e ideológico e estão tomando um palco que deveria ser somente da ciência”, afirma a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.
As pesquisas em curso no Brasil ainda precisam provar que os medicamentos de fato conseguem proteger contra o vírus. “A fase três ainda não terminou para nenhuma dessas vacinas. Sabemos que elas são seguras e conseguiram provocar uma resposta imune. São promissoras, mas não sabemos se o potencial delas vai se traduzir em proteção, se vão impedir que as pessoas fiquem doentes”, explica a microbiologista Natalia Pasternak.
Testes recrutam voluntários
Embora o Governo de São Paulo venha indicando que está próxima a solicitação de registro na Anvisa para a Coronavac, pesquisadores ainda selecionam voluntários para os testes. Fábio Leal, médico infectologista e diretor de pesquisa da Universidade de São Caetano do Sul, um dos centros de teste desta vacina, conta que os últimos 4.000 voluntários ainda estão sendo recrutados.
“Este é o primeiro passo essencial pra que a gente possa começar a vislumbrar uma data de anúncio dos resultados. Toda essa discussão sobre data e questões políticas distorcem e desviam o foco do assunto. A discussão se a vacina vai ser nacionalizada não cabe enquanto não tivermos a análise de sua segurança e eficácia”, afirma.
Na semana passada, um voluntário dos estudos da vacina de Oxford morreu no Brasil de causas não informadas oficialmente. Os estudos não foram suspensos, como aconteceu quando um paciente no Reino Unido apresentou esclerose múltipla (logo se confirmou que a condição não estava relacionada à vacina, e os ensaios foram retomados). O falecimento do voluntário brasileiro aconteceu em decorrência da covid-19. Oficialmente, a Anvisa não comenta detalhes sobre os voluntários por conta das regras de sigilo do estudo. Tampouco confirma a informação de O Globo e Bloomberg de que ele teria tomado um placebo (uma substâncias sem efeito, usada como controle nos testes), e não a vacina experimental.
Pasternak explica que o caso não é preocupante para o estudo, já que não há indícios de que seja decorrência do medicamento.
“É triste a morte do voluntário, mas as pessoas que estão participando dos testes clínicos estão levando vida normal. Alguns adoecimentos e mortes podem não ter nada a ver, e os comitês independentes responsáveis investigam tudo”, explica.
Impacto na cobertura vacinal
A disputa de narrativas dos políticos sobre a vacina, muitas vezes suscitando dúvidas e desconfiança sobre as pesquisas ainda em curso ou mesmo prometendo datas para imunizar a população sem ter os dados necessários, contribui para um efeito colateral grave: os movimentos antivacina que existem no país.
“Essa polarização que muitos governantes colocam gera instabilidade e dúvida da população. Isso é muito sério e pode aumentar a população hesitante com a vacina”, aponta Fontes-Dutra.
A fatia de pessoas vacinadas é crucial para conseguir alcançar a imunização de uma população ― no caso da covid-19, a ciência ainda não tem respostas sobre o percentual que precisa ser vacinado, já que esse dado depende também do grau de eficácia dos imunizantes. Embora a legislação brasileira autorize a vacinação obrigatória se assim o Ministério da Saúde entender como necessária, o presidente Bolsonaro tem defendido que a imunização da covid-19 não será obrigatória. Este é mais um capítulo central para o controle da pandemia no país, também contaminado pela ideologização. (Por Beatriz Jucá - El País)