SAÚDE

O Brasil resiste a uma epidemia de febre amarela?

Especialistas dizem o serviço público de saúde brasileiro já está saturada.

Em 22/01/2018 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Filas dobrando o quarteirão. Pessoas dormindo nas calçadas e uma espera de até 15 horas para tomar uma dose da vacina contra a febre amarela em São Paulo. O Estado vive o maior surto da doença em 14 anos. Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás também registram dezenas de mortos pela doença.

As notícias recentes de novos casos causaram pânico em parte da população e uma corrida aos postos de saúde e clínicas particulares. Mas o país realmente corre o risco de uma epidemia urbana da doença - e está preparado para responder, caso isso ocorra?

Especialistas ouvidos pela BBC Brasil disseram que as chances de uma epidemia como essa são muito pequenas, mas não estão descartadas. E afirmam que o país não estaria preparado, pois sua rede de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), médicos e capacidade de realização de exames já estão saturados.

O médico epidemiologista da USP Eduardo Massad disse que "a situação em que estamos é de muita sorte", devido à baixa quantidade de mosquitos Aedes aegypti - possíveis transmissores da doença em ambientes urbanos - registrada neste ano em São Paulo. Essa condição reduz as chances de epidemia urbana. A última vez que o país enfrentou uma epidemia urbana de febre amarela foi em 1942, no Estado do Acre.

Casos em São Paulo

Os casos de febre amarela registrados recentemente em São Paulo foram transmitidos por mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes - vetores da febre amarela silvestre.

Pesquisadores apontam que esse baixo risco de epidemia possibilitará que a população seja vacinada antes de uma possível transmissão em massa da doença. Caso a disseminação da doença em áreas urbanas começasse antes das imunizações "seria um grande desastre", segundo os especialistas.

O representante da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS), Joaquín Molina, disse que o Brasil está tomando as decisões corretas para o controle do avanço da doença. "Estamos muitos satisfeitos com a resposta que o país está dando ao surto de febre amarela", elogiou.

"Apoiamos plenamente as medidas que o país está tomando, estamos de comum acordo", avaliou Molina.

O órgão destacou, porém, que o maior risco para a ocorrência de epidemias é a chegada da doença a áreas densamente povoadas e que, por isso, está monitorando de perto o avanço dos casos no país.

A OMS ainda emitiu um alerta recomendando que todos os estrangeiros se vacinem contra febre amarela antes de viajar para qualquer cidade do Estado de São Paulo após considerar a região uma área de risco para febre amarela.

Erros causaram surto

A doença pode estar controlada no país, mas, na visão do infectologista Eduardo Massad, o governo cometeu uma série de erros que poderiam ter evitado inclusive o atual surto de febre amarela no Estado de São Paulo. Dois deles foram a falta de mapeamento de áreas de mata onde a doença poderia se proliferar e o início tardio da campanha de vacinação para moradores da região.

"Fiz um estudo com base no surto que ocorreu em Botucatu (interior de SP) em 2009, quando 11 pessoas morreram. Mostrei para o governo há quatro anos, alertei sobre as áreas onde as pessoas não estavam sendo vacinadas e que era preciso fazer uma campanha racional priorizando as zonas de mata, mas isso foi ignorado. O governo não está ouvindo as instituições acadêmicas. Também houve uma negligência do governo por não reforçar o estoque de vacina", disse o professor.

A informação é contestada pelo infectologista coordenador da área de Controle de Doenças da Secretaria de Saúde de São Paulo, Marcos Boulos. Em entrevista à BBC Brasil, ele disse que todas essas ações foram tomadas.

"As pessoas que ficam na universidade e na academia acabam não sabendo o que está acontecendo. Não é a primeira crítica do Eduardo e ele não sabe o que está acontecendo. O primeiro caso de febre amarela foi em abril de 2016, quando percebemos que o vírus passou para os macacos e eles começaram a morrer com a doença. Traçamos um caminho e vimos que ele começou a se aproximar dos centros urbanos. Então, começamos a vacinar", afirmou Boulos.

Ele disse que o trabalho iniciado há 20 meses evitou uma mortalidade dez vezes maior de pessoas em Mairiporã - a secretaria de saúde do município informou que desde dezembro há 57 casos suspeitos da doença, com sete mortes.

"Nós vacinamos 7 milhões de pessoas no ano passado. No próximo mês, vacinaremos mais 8 milhões. O trabalho foi de excelência. Vacinamos segundo os corredores ecológicos onde tinham macacos mortos. Só não vacinamos quem se recusou", disse o infectologista do governo de SP.

Decisão correta

Por outro lado, o professor da USP concorda que a atual decisão de vacinar toda a população do Estado de São Paulo é a mais correta.

Procurada pela reportagem para explicar o que o Brasil poderia ter feito para evitar a eclosão do surto, a Opas/OMS disse não poder dar recomendações logísticas específicas para o país porque as medidas necessárias em cada lugar podem variar. A estratégia de enfrentamento depende das condições em cada região.

Molina explicou nesta semana que a OMS faz recomendações mais amplas, sem especificar um determinado país ou região.

A Opas/OMS disse ainda que considera o Brasil um país com um sistema estruturado, onde o controle e combate às epidemias de doenças tropicais não é negligenciado. "É de se destacar que durante o surto de zika foi o Brasil que identificou a relação do vírus com os casos de microcefalia, o que demonstra que o país está ativamente engajado no enfrentamento desse tipo de ameaça", informou a organização.

Vacinação de macacos

Pensando no futuro, o professor da USP diz que o governo erra ao não considerar a possibilidade de vacinar os macacos em matas do Estado, em vez de imunizar a população. Com um pequeno percentual do dinheiro gasto para imunizar a população humana de São Paulo, seria possível vacinar os 50 mil macacos que vivem no Estado.

"As vacinas foram testadas em macacos e eles podem ser protegidos. Ninguém estuda isso. Isso me deixa completamente perplexo", diz Massad. Ele diz ainda que é necessário montar um sistema de segurança e avaliar a densidade de mosquitos Aedes aegypti e se algum deles está portando o vírus.

O coordenador de Controle de Doenças da Secretaria de Saúde concorda que vacinar macacos seria o ideal, mas diz que isso é inviável.

"É meu sonho de consumo. Se ele (professor da USP) souber como vacinar macaco... eu não sei. Não existe tecnologia para vacinar macaco, mas ele tem razão. Se você vacinar o bugio, ele não pega febre amarela e protege o homem, porque o ciclo é feito na copa das árvores. Quando o bugio morre deixa de ter sangue disponível, ele desce e o homem pode ser picado acidentalmente. Se tiver vacina para macaco, vamos adorar", disse Marcos Boulos.

Boulos disse ainda que não foi feita uma campanha nacional de vacinação porque, por ser feita com o vírus atenuado, a dose não é inócua e algumas pessoas que não tinham risco de ser contaminadas passaram a morrer.

"A prioridade 1 é vacinar as pessoas (que moram na região) onde circula o vírus. A segunda são as regiões receptivas, onde você tem o Haemagogus e o macaco, como na serra do mar do Rio. É muito possível que tenhamos um caminhar da febre amarela saindo dessa região e indo para São Paulo. A terceira e última é o resto da população, que não corre o risco, mas pode ir para uma dessas áreas", disse Marcos Boulos.

Dificuldade de diagnóstico

Reportagem publicada pela BBC Brasil nesta semana mostrou um homem que morreu com febre amarela após ter sido diagnosticado com sinusite, infecção urinária e enxaqueca. Foram cinco dias até acertar o diagnóstico e interná-lo às pressas. Tarde demais. O técnico em refrigeração morreu quatro dias depois aos 31 anos, deixando mulher e dois filhos.

"O despreparo existe. Toda vez que existe uma epidemia, há um tempo até que todos aprendem a fazer o diagnóstico. Ninguém está preparado para atender uma doença nova. Diagnóstico clínico (da febre amarela) é muito difícil. É necessário um exame laboratorial clínico e epidemiológico para confirmar", disse o epidemiologista Marcos Boulos.

Ele explica que a doença, assim como a dengue, é apenas tratada e que há indicações a serem feitas para evitar as mortes. Segundo dados do Ministério da Saúde, 51% das pessoas infectadas pela doença entre 1980 e 2004 morreram.

"O ideal é ter o diagnóstico entre sete a dez dias. Indicamos que caso os resultados dos exames de fígado mostrem alteração muito rápida, ele seja transferido imediatamente para um hospital especializado", disse Boulos.

Foto: EPA